O juiz Márcio Assad Guardia, da 8ª Vara Criminal Federal de São Paulo/SP, anulou um acordo de não persecução penal firmado pelo Ministério Público Federal (MPF) com um homem acusado do crime de contrabando. Na decisão, o magistrado considerou que esse tipo de acordo não possui amparo constitucional e legal, declarou a nulidade da persecução penal e concedeu, de ofício, um habeas corpus em favor do acusado para determinar o trancamento do procedimento investigatório criminal.
O acordo de não persecução penal está previsto na Resolução nº 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Segundo o normativo, esse acordo pode ser aplicado a quem comete delito não violento de médio potencial ofensivo (pena mínima inferior a 4 anos) e, nesses casos, não há o oferecimento da denúncia por parte do MP. Em contrapartida, é necessário que o investigado confesse formalmente a prática da infração penal, indique provas de seu cometimento e ainda cumpra, de forma cumulativa, alguns requisitos como reparar o dano à vítima.
Márcio Assad considerou nulo o fundamento normativo do referido acordo, “haja vista que a pseudonorma sob a forma de ‘resolução’ [...] consiste em violação acintosa à Constituição da República e atenta contra os pilares do Estado Democrático de Direito”. De acordo com o magistrado, a Carta Magna estabelece que a competência da União em legislar sobre Direito Penal e Processual Penal é realizada por meio do Congresso Nacional, obedecendo a um rígido processo legislativo, e que nem mesmo o presidente da República, por meio de medida provisória, pode editar normas sobre esses temas.
“Sucede que, em manifesto desapreço à Constituição da República Federativa do Brasil e ao Estado Democrático de Direito, o CNMP, o qual nem sequer Poder de Estado é, cujo estrito feixe de atribuições está claramente delimitado no art. 130-A da Constituição Federal [...], insere na malsinada Resolução nº 181/2017, em seu art. 18, normas com nítido conteúdo penal e processual penal”, afirmou o juiz.
Em outro ponto, o magistrado ressaltou que, “se cada instituição, órgão ou indivíduo passa a criar as próprias normas, conferindo a si próprios poderes por autoproclamação e autolegitimação, à margem da ordem jurídica posta e pactuada como sociedade politicamente organizada, com primazia da Constituição, temos a antítese do Estado de Direito”.
Márcio Assad também criticou o artigo 18 da Resolução do CNMP por limitar a atuação do Poder Judiciário à simples tarefa de verificar se as condições para a homologação do acordo são “adequadas” e “suficientes” e, em caso de discordância do juízo, a Resolução prevê o envio do acordo a órgãos internos do próprio Ministério Público, como câmaras de coordenação e revisão ou à Procuradoria-Geral.
“Como se nota, para além de invadir competência do Poder Legislativo, a resolução em comento pretende também ditar normas ao Poder Judiciário, por meio de norma infralegal emanada de órgão que não possui ingerência alguma para além do âmbito da disciplina institucional dos Ministérios Públicos”, afirmou.
Outra questão exposta pelo magistrado é que o artigo 18 também confere ao membro do Ministério Público poderes para oferecer e elaborar o conteúdo do acordo segundo sua vontade, à margem de qualquer critério. “Franqueia-lhe a criação e imposição de penas desprovidas de qualquer balizamento, de sorte a estimular o subjetivismo e exercício de parcela do poder estatal sem legitimidade, sem freios, sem controle efetivo e sem limite. Trata-se, pois, da consagração do arbítrio, em manifesta violação ao princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF)”.
Ao decidir sobre a nulidade da persecução penal, o juiz aponta que o acordo viola diversas outras normas constitucionais, tais como o princípio da isonomia; contraditório e ampla defesa; obtenção de provas por meio ilícito; e o direto ao silêncio, uma vez que um dos “pressupostos do acordo” é a confissão formal e circunstanciada da prática do crime por parte do investigado.
“Não se sustenta aqui a mera nulidade da confissão (ato praticado pelo investigado) e do acordo em si [...], mas sim a nulidade dos atos praticados pelo órgão ministerial que culminam na extração da confissão e é a nulidade desses atos que ensejam a nulidade da persecução penal”, frisa o juiz. (JSM)
Processo nº 5003448-88.2019.403.6181 – íntegra da decisão