O juiz federal Tiago Bitencourt de David, da 5a Vara Cível Federal de São Paulo/SP, determinou ontem (27/10) que a União Federal informe no site do Ministério da Saúde, em 15 dias, se há ou não eficácia comprovada das sementes de feijão no combate à Covid-19, defendidas em vídeo pelo líder religioso Valdemiro Santiago de Oliveira (Igreja Mundial do Poder de Deus), bem como apresente, no prazo de 30 dias, a identidade completa de quem determinou a supressão da informação antes veiculada no site do referido Ministério.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), Valdemiro Santiago de Oliveira, em nome da Igreja Mundial, incentivava os fiéis a plantar as sementes por ele comercializadas, em valores predeterminados de R$ 100 a R$ 1.000, sob o argumento de que teriam eficácia terapêutica para a cura da Covid-19, mesmo em casos graves. Para o órgão ministerial, houve prática abusiva da liberdade religiosa, uma vez que os corréus Igreja Mundial do Poder de Deus e Valdemiro Santiago de Oliveira tinham o objetivo de angariar recursos financeiros com a venda das sementes.
O MPF alegou, ainda, que expediu ofício ao Google Brasil Internet Ltda solicitando a retirada e preservação dos vídeos existentes na plataforma. Além disso, solicitou ao Ministério da Saúde que a notícia veiculada pelo líder religioso fosse incluída no site oficial do órgão como sendo “fake news”, porém, apesar da solicitação ter sido inicialmente acolhida, foi posteriormente retirada do ar sob o argumento de que a iniciativa induziu, equivocadamente, ao questionamento da fé e crença de uma parcela da população.
Instada a se manifestar, a União informou que tem adotado as medidas necessárias para neutralizar as informações equivocadas que colocam em risco a saúde pública e que causam prejuízos sociais, incluindo em seu site a informação de que inexistem estudos científicos sobre alimentos que garantam a cura ou o tratamento da Covid-19.
Tiago Bitencourt afirma, em sua decisão, que “é preciso considerar que a liberdade de crença não pode ser indevidamente restringida pelo Estado e nem este pode ser cooptado por entidade religiosa, pois a Constituição Federal estabelece que o Estado é laico, não combatendo a profissão de fé e nem incorporando-a no próprio governo, de modo que os fiéis não têm mais ou menos direitos que os ateus”.
Para o juiz, se uma pessoa deseja gastar seu dinheiro de um modo e não de outro, isso é assunto dela, não podendo o Estado dizer que ela é ignorante e não sabe fazer boas escolhas. “Postas tais premissas, cumpre observar que ao Estado cumpre o dever de informar os seus cidadãos sobre os meios de prevenção, promoção e recuperação da saúde. Informar não é obstruir uma profissão de fé e nem impedir que as pessoas façam as escolhas que reputarem pertinentes”.
Tiago Bitencourt ressalta que apresentar os dados significa dar condições de que se escolha de modo informado e consciente, permitindo um incremento da capacidade de eleição entre as opções de como conduzir-se. “Por isso, deve o Ministério da Saúde apresentar aos brasileiros como tem agido e quais são as opções de prevenção e recuperação que já se mostram corroboradas cientificamente e as que não”.
O magistrado refuta usar o termo “fake news”, mas entende que cumpre à União informar a população acerca da (in)eficácia curativa do feijão apresentado como abençoado e alegadamente dotado de poder restaurador da saúde. “O Estado afirmar que uma informação é fake news revela-se incompatível com a seriedade, a clareza e a neutralidade que devem nortear a comunicação pública. Ao mesmo tempo que cabe ao Estado o dever de informar, não lhe diz respeito a emissão de juízo de valor sobre a profissão de fé”.
Na opinião do juiz, o Estado deve informar de forma cuidadosa e respeitosa, neutra, limitando-se a dizer que (não) há eficácia comprovada do produto no que tange à Covid-19. “Isso permite uma harmonização entre o direito à informação e o direito à expressão de crença religiosa, sem restringir-se cada um dos direitos fundamentais mais do que o estritamente necessário”.
Igualmente pertinente é a apresentação, pela União, de quem determinou a supressão da informação antes veiculada no site do Ministério da Saúde, dada o direito das pessoas de conhecer a autoria dos atos praticados no exercício da função pública. “Não se está aqui pré-julgando o responsável pela decisão de suprimir a informação veiculada no site do Ministério da Saúde, mas é direito da sociedade saber quem ordenou tal providência”.
Por fim, o juiz deferiu o pedido para determinar que a Google Brasil Internet Ltda preserve a íntegra dos vídeos veiculados na plataforma do YouTube, bem como para que, no prazo de 30 dias úteis, preste informação sobre os dados cadastrais (nome, qualificação, e-mail, endereço), inclusive endereço IP do responsável pela postagem ou inserção, na plataforma do YouTube, dos referidos vídeos. (RAN)
Ação Civil Pública no 5014383-08.2020.4.03.6100 – íntegra da decisão