A União Federal terá de pagar R$ 100 mil de indenização por danos morais à filha de uma paciente que, nos anos 50, foi internada compulsoriamente após ser diagnosticada com hanseníase. A decisão foi proferida ontem (4/3) pela juíza federal Cristiane Farias Rodrigues dos Santos, da 9ª Vara Cível Federal de São Paulo/SP.
Na ação, a autora requereu o reconhecimento de que sofreu lesão ou violação a direitos da personalidade (honra, dignidade da pessoa humana, integridade física e psíquica) no que diz respeito à convivência familiar de que foi privada após a internação compulsória da mãe. Como reparação, pediu que a União fosse condenada a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 500 mil.
Além disso, ressaltou que em razão da política imposta pelo Estado brasileiro para a profilaxia da hanseníase, vulgarmente chamada de “lepra, morfeia ou Mal de Lázaro”, foi uma, dentre milhares de crianças filhas de pais que padeciam de hanseníase, que foi compulsoriamente retirada do seio de sua mãe e separada de seus pais, sendo encaminhada para o Educandário Santa Terezinha, em Carapicuíba/SP. Concluiu afirmando que a política pública de saúde adotada pelo Estado brasileiro destruiu sua família.
Em sua manifestação, a União Federal argumentou, entre outros motivos, que ante o fato de a autora haver saído do internato por volta de 1970 e somente agora estar ingressando com o pedido de danos morais, sua pretensão indenizatória estaria prescrita.
No tocante à prescrição do pedido, a juíza afirma que o objeto da presente ação é o de que haja o reconhecimento e a declaração, pelo Poder Judiciário, de ter havido lesão a direitos fundamentais da requerente. “Não se há de invocar, como feito pela União Federal, simples normas aplicáveis a prazos prescricionais para ações que vindicam danos morais comuns, que não impliquem tais objetos de proteção do Estado e, portanto, dão conta de possível violação à dignidade da pessoa humana”.
Cristiane dos Santos ressalta que, muito embora a jurisprudência constitucional tenha se assentado, especialmente, nas importantes questões de repúdio ao racismo e, mais recentemente, às desigualdades de gênero, não se pode esquecer que o texto constitucional se refere a qualquer forma de discriminação, na medida em que estamos lidando com temas que tocam de perto à essência de condição humana. “Nessa linha, não se pode admitir que o passar do tempo seja suficiente para apagar as dores que ficam na memória de quem pode ter sido aviltado no mais íntimo de sua personalidade”.
Ao julgar o mérito da ação, a magistrada chama a atenção para a situação da política pública então adotada pelo Estado brasileiro na época. “O que ontem era considerado normal, atualmente, afigura-se verdadeiro ato execrável e mesmo ignominioso, à luz da atual diretiva dos Direitos Humanos [...]. Tal paralelo é necessário, uma vez que a presente ação trata justamente de tal situação, relativamente a uma doença que, no século passado, foi considerada estigmatizante, mortífera, ainda sem cura definitiva e que deixou igualmente nos portadores e familiares inúmeros traumas”.
Cristiane dos Santos afirma que a prova documental e testemunhal caracterizam a política de segregação compulsória então adotada pelo Estado brasileiro e da qual a autora foi vítima, como verdadeira filha de mãe portadora de hanseníase.
“A privação do convívio social pela internação compulsória feriu direito subjetivo fundamental ao convívio familiar da autora, a uma vida digna e às relações familiares alicerçadas pela observância do princípio da dignidade da pessoa humana, como preceitua o artigo 226 da Constituição Federal, que reconhece a família como base da sociedade e confere ao Estado o dever de protegê-la. Além disso, a Constituição atribui à família e ao Estado o dever de garantir à criança e ao adolescente o convívio familiar e a dignidade”, afirma.
Por fim, a juíza julgou parcialmente procedente o pedido e reconheceu que a autora foi vítima de lesão ou violação a direitos da personalidade, integrantes da dignidade da pessoa humana, pelo Estado brasileiro, por ser filha de paciente internada compulsoriamente, portadora do Mal de Hansen. Por consequência, condenou a União Federal ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 100 mil. (RAN)
Procedimento Comum Cível no 5015890-72.2018.4.03.6100