A União Federal foi condenada, no último dia 23/6, ao pagamento de danos morais coletivos no valor de R$ 5 milhões devido às declarações e omissões de seus agentes com caráter discriminatório e preconceituoso em relação às mulheres. Além disso, está obrigada a destinar R$ 10 milhões para campanhas publicitárias dedicadas ao tema, por intermédio de redes sociais, radiodifusão, mídia indoor ou escrita. A sentença é da juíza federal Ana Lúcia Petri Betto, da 6a Vara Cível Federal de São Paulo.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), autor da ação, as declarações dos agentes públicos do Poder Executivo, dentre as quais o presidente da República, Jair Bolsonaro; os ministros Paulo Guedes e Damares Regina Alves; o ex-ministro Ernesto Araújo e o deputado federal Eduardo Bolsonaro, têm causado consequências negativas para a sociedade brasileira e danos morais de dimensão transindividual, potencializados pela rapidez da repercussão de tais mensagens por meio das redes sociais. Além disso, constituem abuso da liberdade de expressão e afronta aos deveres basilares no desempenho das atribuições de seus cargos.
O órgão ministerial alegou, ainda, que os discursos proferidos veiculam estereótipos que reforçam abusivamente a discriminação e o preconceito, estigmatizando as mulheres, impactando negativamente a missão constitucional de modificação dos quadros de desigualdade social, promoção da cidadania e da dignidade humana e violando o princípio da moralidade administrativa, previsto nos artigos 37 da Constituição Federal e 116, IX da Lei nº 8.112/1990.
Em sua decisão, Ana Lúcia Petri Betto ressalta que o sistema constitucional brasileiro não admite, no núcleo essencial do direito à liberdade de expressão, manifestações de intolerância e de incitação à discriminação e ao ódio, sob pena de desvirtuamento dos objetivos e princípios fundamentais da República. Ademais, de acordo com os entendimentos firmados pelo Supremo Tribunal Federal, existe a possibilidade de responsabilização do agente político, a partir de seus pronunciamentos, pela violação aos interesses da coletividade.
“A simples reprodução das falas elencadas pelo autor (MPF) evidencia o conteúdo esdrúxulo e transgressor das declarações atribuídas aos agentes da ré (União). Convém destacar que os discursos foram veiculados em canais diversos, tais como eventos sociais, entrevistas a jornalistas, audiências públicas e transmissões em redes sociais digitais”, pontua a decisão.
A juíza afirma ser notório que os emissores não se pronunciaram na condição de cidadãos, valendo-se da função pública ocupada, dos contextos em que se encontravam e, particularmente no caso dos pronunciamentos do presidente da República, da ênfase em expressões inadequadas e polêmicas, em evidente expectativa de proveito político da repercussão. “Se as expressões utilizadas, por si só, são dignas de espanto e repúdio, assumem ainda maior gravidade quando inseridas no contexto fático e social em que se situam as cidadãs brasileiras, de intensa desigualdade e privação, motivadas pela supremacia cultural do patriarcalismo e da heteronormatividade cultuados publicamente pelos agentes da ré”.
Da Administração Pública, destaca Ana Lúcia Petri Betto, é esperado o cumprimento dos deveres e das garantias asseguradas constitucionalmente aos cidadãos, não apenas em ocasiões ou por medidas pontuais, mas de forma perene, cotidiana e universal, não se admitindo o desvirtuamento da missão institucional por agentes ou grupos políticos instalados provisoriamente em seu comando. “Resta claro o viés ofensivo à dignidade das mulheres, o que não pode, de maneira alguma, ser albergado no espectro da liberdade de expressão”.
Como forma de reparação aos danos coletivos, a União terá de promover campanhas de conscientização voltadas à promoção da igualdade de gênero. “Trata-se de colocar luz a uma situação de agressão reiterada à dignidade de amplo contingente da sociedade brasileira, agressão esta que deve ser inibida e reparada, o que em nada se confunde com a atividade rotineira de deliberação sobre a destinação orçamentária [...]. A imposição de obrigação de fazer possui amparo na legislação constitucional e infraconstitucional, não podendo ser interpretada como tentativa de usurpação do papel da União Federal na destinação de suas receitas”, acrescenta a magistrada.
As campanhas terão de passar por avaliação das entidades que compõem o comitê previsto no artigo 17 da “Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher”, pela Procuradoria da Mulher da Câmara dos Deputados ou entidades dedicadas ao tema. (RAN)
Ação Civil Pública no 5014547-70.2020.4.03.6100 – íntegra da decisão